Alvin Lucier no Brasil


Alvin Lucier (1931- ) veio para o Brasil tocar duas noites no 45o Festival Musica Nova 2010. Alguém sabia? Alguém viu-ouviu alguma divulgação? Eu e muitos do que estavam lá não sabíamos da sua vinda ao Brasil até horas antes. Eram poucas pessoas na platéia, no segundo concerto dia 21 de outubro, umas trinta. Disseram que no dia anterior tinha umas dez pessoas apenas. Descaso? Incompetência? Dinheiro público mal utilizado? Neste momento, o tanto que estou impactado pela apresentação de Lucier só aumenta minha indignação quanto ao descaso entorno da falta de divulgação.

Vamos ao que interessa, pois gostaria de dividir aqui a força que foi escutar Alvin Lucier ao vivo. Uma experiência inesquecível, um verdadeiro acontecimento que imagino levarei algum tempo para assimilar. Independente, vou tentar descrever aqui com o frescor dos sentidos que ainda estão latejando. 

O concerto teve três peças: Opera with objects (1997), I am sitting in a room (1969) e Nothing is real (1990).
Ópera com objetos (1997)
Na primeira peça chamada Ópera com objetos, Lucier aos 79 anos, não contendo os movimentos trêmulos das mãos, percutia um lápis noutro mantendo um pulso constante. Tinha a sua frente diversos tipos de OBJETOS - potes, copos, embalagens de vidro, isopor E papelão, etc. - dispostos numa mesa sem qualquer amplificação. Encostando o lápis nos objetos, ele ia explorando a ressonância de cada um. Os mínimos gestos revelavam tamanha fragilidade e força, assim como o pulso flutuante-regular, que exigia dos ouvintes a mesma atitude para desvendar, nuances e reverberações em estados emergentes. Tais vibrações habitavam um espaço qualquer entre o audível e inaudível das variações mínimas do sons acústicos daquelas frágeis embalagens descartáveis.

I am sitting in a room (1969) uma das obras mais importantes e conhecidas de Lucier.
Durante os aplausos da primeira peça, Lucier vai até a coxia e volta com um livro de baixo do braço. Cruza todo o palco a passos lentos, senta-se na cadeira tendo o microfone num pedestal frente sua boca. Abre o livro sobre suas pernas e lê o texto. Terminada a leitura. Alguns segundos de silencio. Inicia nos auto-falantes do auditório a gravação daquilo que ele havia acabado de recitar. O microfone grava agora sua fala projetada pelos auto-falantes na sala. Em seguida, é mais uma vez executada nos auto-falantes do auditório e re-gravada. Esse processo se repete várias vezes. A cada repetição a gravação anterior sofre uma “deterioração”. Progressivamente, as palavras se tornam ininteligíveis, até que, finalmente, resta apenas a ressonância dos harmônicos da própria sala. Uma espécie de "digital sonora" do espaço. O texto lido descrevia esse processo, mais ou menos da seguinte forma:

"Eu estou sentado em uma sala assim como a que você está agora. Estou gravando o som da minha voz e vou tocá-lo repetidas vezes para dentro da sala até que as freqüências de ressonância da sala possam reforçar, por ela mesma, toda a aparência de meu discurso que, com exceção do ritmo, será destruído. O que você vai ouvir, então, serão as freqüências naturais de ressonância da sala articuladas pelo discurso...".  E conclui. " Eu considero essa atividade menos uma demonstração de um fato físico, do que uma forma de atenuar eventuais irregularidades que meu discurso possa ter".

Dentre as várias leituras possíveis de I am sitting in a room é instigante perceber como a peça coloca em performance o próprio espaço acústico do teatro a partir da mediação do sistema de gravação e reprodução, bem como temas envolvendo a própria mídia como o sentido do ruído, do discurso, da mensagem e do meio. Uma peça radical que lida de maneira inteligente e simples com tecnologias que envolvem o sonoro como: microfone, gravador, auto-falante, acústica bem como a escuta num sentido conceitual e da própria percepção. Esta obra foi uma daquelas experiências estéticas que mudaram minha forma de viver-pensar o som e a mídia sonora. Algo parecido com a experiência de John Cage na câmara anecóica e seus desdobramentos no conceito de silêncio-ruído e da própria música num sentido amplo. Depois de experenciar I am sitting in a room é impossível pensar o sistema de reprodução do som da mesma forma. Parece que Alvin Lucier conseguiu alcançar neste trabalho um tipo de articulação (performatização) do suporte sonoro analógico que leva a um nó conceitual de interpretações diversas. Tantas vezes escutei-a, tantas vezes surgiram novas formas de escutá-la e pensá-la. Ter presenciado ao vivo a performance potencializou e atualizou, ainda mais, todas essas questões que envolvem a percepção do sonoro e o amplo significado da escuta e o sentido da mediação tecnológica que envolve o som. 



Nada é real? 
Encerrando o concerto "Nothing is Real" um arranjo de Strawberry Fields Forever dos Beatles encomendada pela pianista japonesa Aki Takahashi para a EMI. Antes de começar a tocar o piano, Lucier mexe num objeto sobre a partitura, que depois se descobre que é um gravador portátil. Inicia-se então os fragmentos da melodia dos Beatles. As teclas percutidas vão tomando o espaço e sendo sustentadas como clusters, um tipo de mistura de minimalismo e espectralismo. Terminado de tocar a partitura Alvin para o gravador. Aperta o play. Levanta-se e vai até o outro lado do piano onde tem um pequeno bule de chá sobre a calda do piano. Começa-se a escutar a reprodução do que acabara de tocar. Mas a música agora soava de outra forma, abafada e pequena. Estava sendo emitida de um pequeno auto-falante escondido dentro do bule. Durante a reprodução, Lucier levantava e abaixava a tampa do bule, alterando características de ressonância da gravação em relação ao pote de chá. A cena inusitada de Lucier abrindo e fechando a tampa do pote tornava a performance ainda mais curiosa e misteriosa. Uma misto de deslocamento de tempo das notas em clusters e deslocamento da gravação em blocos de duração e filtragem suspensos no ar. Lucier parecia tocar o registro da gravação como um pedal de sustentação do tempo ressoante congelado.
Aplausos, aplausos, aplausos. Terminado o show, passado alguns minutos, fiquei observando Alvin Lucier, o bule sobre o piano e imaginando se tudo aquilo tinha acontecido mesmo. Nothing is real? Nothing is real! Nothing is real. No things is real... Era o refrão que se repetia em minha mente e que tentava encontrar diferentes formas de entoar aquela frase. A cada vez que a frase voltava em meus pensamentos parecia que algo ia se 'ruidificando' em relação ao que acabara de acontecer. Ao mesmo tempo, alguma fatura da própria matéria de minha memória ia criando outras sensações e impressões.
Passado um pouco o impacto, enquanto aquele refrão permanecia em loop na minha cabeça - Nothing is real? Nothing is real! ... As diferenças pipocavam. Repetição afirmando que nada era como antes. O retorno da pergunta alcançou tal ponto de entropia, tamanha quantidade de material em retroalimentação sensorial que o efeito foi de um big bang de pensamentos. Zilhões de vetores de idéias desordenadas se espalhando em velocidades diversas, multiplicando sentidos para todos os lados. Foi quando pareceu que nada mais podia ser real mesmo. O real como algo tangível, circunscrito e definível não existia mais. A realidade havia se multiplicado.